14/05/2025

O "diário" como instrumento terapêutico.

Homem de camisa vermelha

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O diário de Carolina.

Carolina Maria de Jesus (1914-1977) é uma mulher inspiradora que tinha muito contra si, a condição de pobreza extrema, pouca escolarização, foi mãe solo de duas crianças, mulher negra e favelada, mas ela fez da sua vida uma obra de arte e a sua história de coragem conquistou pessoas pelo mundo. 

Carolina Maria teve uma infância sofrida em uma comunidade rural de Sacramento, em Minas Gerais. Acontecimentos fizeram com ela precisasse se mudar para São Paulo, onde trabalhou como empregada doméstica. Sem emprego e engravida, Carolina foi morar na favela do Canindé, a primeira grande favela da capital paulista. A escritora encontrou respaldo e consolo na leitura e na escrita, registrando o seu cotidiano em cadernos que encontrava pela rua. Esses relatos deram forma ao livro Quarto de Despejo: Diário de Uma Favelada (1960), seu primeiro e mais famoso livro, um boom literário que a projetou internacionalmente e hoje está traduzido para cerca de treze idiomas.

Os dias descritos nas páginas do diário, expõem uma análise da autora sobre a sua condição como mãe solteira e moradora da favela, assim como a luta contra a fome e a defesa e cuidado dos filhos. Há o relato de vivência de vizinhos, ora criticados e ora elogiados. Por meio dos relatos de Carolina Maria é possível ter uma ideia do dia a dia das pessoas que vivem em favelas em São Paulo, ela expõe a opressão, a violência, e a determinação em sobreviver frente à tantas adversidades. A escolha das palavras é um elemento importante, assim como a escolha de quem ela irá ou não retratar em seus textos. 

Carolina Maria realizou o sonho de ter uma casa de alvenaria fora da favela, foi morar com os filhos no bairro de Santana, mudança registrada em seu livro seguinte, Casa de Alvenaria (1961)A escritora faleceu em 1977, aos 62 anos, e três obras póstumas viriam a público: Diário de Bitita (1986), Antologia Pessoal (1996) e Meu Estranho Diário (1996).

 O diário é um gênero que acolhe alegria, tristezas, sonhos...

A pesquisadora Maria José Motta Viana, em seu livro Do sótão à vitrine: memórias de mulheres, aponta alguns motivos que fazem da escrita do diário uma prática recorrente entre as escritoras brasileiras. Um deles é a possibilidade de, através dessa escrita, a figura feminina poder reaver-se enquanto sujeito. É através da escrita que Carolina torna-se sujeito de si mesma, uma vez que põe no papel seus dramas e angústias, seus medos e frustrações; e através dela torna-se sujeito social ao retratar a pobreza e a miséria presente no “quarto de despejo”. Maria José dirá que, nas entrelinhas do texto, podemos compreender uma nova faceta para a autora do que seja o ato de ler. Nas anotações de 27 de junho de 1958, ela aponta para o caráter cativante da leitura: “tem muitas pessoas aqui na favela que diz que eu quero ser muita coisa porque não bebo pinga [...] Eu não bebo porque não gosto, e acabou-se". O ato de escrever, para Carolina, era revolucionário, pois, permitia a ela imaginar a sua saída da pobreza extrema e sonhar com uma vida melhor para si e seus filhos: 

 “quem escreve gosta de coisas bonitas".

A escrita foi um fator que diferenciou Carolina dos demais moradores da favela, universo marcado pelo analfabetismo, de forma que a escritora se tornou um incômodo, um ser fora do lugar. Ela se autodenominava escritora, mesmo enquanto o seu diário não havia sido publicado. Foi insultada pelos moradores por almejar um status intelectual que, de acordo com o senso comum, não era de direito às pessoas que viviam no quarto de despejo da cidade, ou seja, na favela. Diante do que foi posto, podemos concluir que a prática da leitura e o ato da escrita desempenharam um papel transformador para Carolina Maria de Jesus. 

Outras escritoras, artistas e mulheres anônimas fizeram do diário um instrumento terapêutico e artístico. A artista plástica mexicana Frida Khalo, por exemplo, mesclou pinturas, desenhos e escrita no seu famoso diário.

Texto

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El Diario de Frida Kahlo:um Íntimo Autorretrato é constituído por 170 páginas, sete aquarelas, desenhos, esboços e inúmeras anotações escritas (com tintas de cores vibrantes) que, de maneira visualmente atrativa, narram, de forma não linear, os dez últimos anos de vida dessa artista–o período compreendido entre 1944 e 1954.

Aos 6 anos, Frida Kahlo foi acometida pela poliomielite. Aos 18 anos, sofreu um acidente quando voltava para sua casa de ônibus. Houve um choque com o bonde e Frida  foi atingida por uma barra de ferro, sofrendo  tríplice  fratura  na  região  pélvica  e  atingindo  sua  coluna  vertebral. Após a cirurgia, A artista ficou 7 meses com o corpo engessado e, assim, apenas com os pés e as mãos livres, nasceu a pintora. 

Frida passou por muitas cirurgias. O corpo possui papel central na sua criação fazendo emergir  o ato de criação. Frida é outro exemplo de como a escrita pode auxiliar a pessoa na elaboração de vivências difíceis, especialmente por acolher poesias, metáforas e símbolos, que muitas vezes são alternativas para se expressar o que resiste à fala. A arte e as possibilidades de escrita sobre si, dentre elas a escrita diarística, exploram perspectivas  que  permitem  relançar  alguns  olhares  para o cotidiano como ele é, mas também como poderia ou poderá ser.

Uma escrita de si e para si.

Na atualidade, muitas pessoas, em especial adolescentes e jovens, têm se expressado através de blogs e sites. Dentre as formas de escrita e de expressão que se apresentam atualmente, pensar a função da escrita de diários íntimos e na subjetividade pode parecer algo antiquado, porém, a relevância de tal discussão se justifica por essa especificidade do que é escrito de si e para si. 

A sociedade contemporânea é marcada pela espetacularização de si, a correria faz com que o tempo para refletir se torne torna-se cada vez mais escasso e precário. Entretanto, entendemos a importância desse tempo, do impacto positivo que essa parada, mesmo que pequena, é capaz de promover na saúde. É preciso um tempo para olhar para si mesmo. 

A escrita, mais especificamente, a escrita do diário, abre espaço no tempo e dá lugar à palavras,  imagens, sentimentos, experimentação de devires. Essa escrita, geralmente particular e privada, cria redes, conexões, articulações com social, o afetivo, e relações inter e intrapessoais podem se desenvolver. 

A obra de Frida Kahlo é um exemplo do potencial humano para simbolizar e transformar sofrimento e  dor em potência de vida e arte. Frida encarou de frente a morte e dores insuportáveis por conta de sua doença, na idade adulta teve que amputar um pé, mas em uma espécie de catarse de autoconhecimento, aceitando apoderar-se de “saúde” e mostrando que podia ser agente de sua própria história. O Diário de Frida é uma fonte para estudiosos que desejam conhecer melhor Frida Kahlo e admirar a artista que marcou profundamente a História da Arte da América, e que também foi uma das grandes pioneiras do Movimento Feminista do Século XX.

Diário e cartas.

Cartas e diários íntimos são peças de arquivos privados, ou seja, documentos da intimidade. Há séculos as mulheres atribuem grande importância a seus diários e correspondências. O diário pode ser considerado uma escritura essencialmente de dentro, onde  além dos dados e acontecimentos do cotidiano, sentimentos e sensações internas ocupam  um  grande  lugar. É  uma  escritura  que  rejeita  uma  organização  formal seguindo regras próprias, estipuladas seus criadores, e acolhe o que, por escolha, deve ser preservado do esquecimento. 

O USO DO DIÁRIO EM TERAPIA

O processo de escrever um diário é terapêutico e a eficácia desse recurso tem sido comprovada por variados estudos. Preencher as páginas em branco de um caderno, seja qual for o seu formato, é um aparentemente simples, exercício de escolhas e um ato de coragem. Com a evolução da tecnologia, o hábito de registrar a vida no papel infelizmente se tornou raro. No entanto, manter um diário escrito à mão apresenta muitos benefícios para a saúde mental. 

É importante que o Diário seja, de maior maneira, espaço para afirmações positivas, buscando analisar o que os sentimentos e experiências têm a ensinar. 

Entre vários estudos, os realizados por Harber e Pennebaker (1992) indicam que a expressão escrita sobre experiências vividas pode ajudar os indivíduos a reorganizar e assimilar estas experiências. De acordo com estes autores, este processo integra em si, aspectos cognitivos e emocionais, sugerindo que a expressão das emoções através da escrita oferece uma oportunidade para aumentar o insight, a capacidade de autorreflexão, e a organização da perspectiva do próprio sobre os eventos, em contraste com a simples revelação de sentimentos e emoções de forma espontâneaSendo assim, os casos de escritoras que romperam obstáculos com a ajuda de seus diários, servem como inspiração para para a pessoa que deseja viver essa experiência.

Lembramos que o Diário terapêutico pode ter o formato escolhido pela pessoa e pode receber colagens, desenhos, textos, pensamentos, uma impressão sobre algo que aconteceu, sonhos, expectativas dores, angústias, enfim... tudo aquilo que nos define como humanos e que o autor deseja salvar do esquecimento. Há alguns anos utilizo a escrita como recurso terapêutico e tenho visto o quanto o Diário é significativo, se mostrando mais um canal de diálogo entre a pessoa e consigo mesma e, se ela desejar, com o(a) terapeuta.Renata

Link do diário:https://dpid.cidadaopg.sp.gov.br/pde/arquivos/1623677495235~Quarto%20de%20Despejo%20-%20Maria%20Carolina%20de%20Jesus.pdf.pdf favelada