“O principal instrumento terapêutico a ser utilizado para o tratamento de pessoas com transtornos decorrentes de uso, abuso ou dependência de substâncias psicoativas deverá ser a convivência entre os pares” (Artigo 1º/ RDC 29/2011).
A palavra “oficina[1]” possui variadas acepções, entre elas: “lugar onde se verificam grandes transformações” e “lugar onde se exerce um ofício”, ou seja, uma ocupação (trabalho) de ordem manual e/ou intelectual. A oficina terapêutica engloba estes significados, abrindo para o indivíduo espaços de expressividade e de criação.
Os trabalhos em grupo, especialmente os que são mediados pelo lúdico, fortalecem o pilar da convivência no tratamento da dependência química e possibilitam a ampliação da tolerância que, segundo a UNESCO é “a harmonia na diferença”. As experiências vivenciadas nas oficinas grupais têm potencial para fazer com que o “ímpeto cego do eu” se transforme em “propósito”, de forma que “as tendências instintivas convertem-se em empenhos planejados”:” as atitudes do eu são impregnadas de sentido” (DEWEY, 1992, p. 145).
Algumas particularidades singularizam as oficinas terapêuticas, nessas atividades o objetivo final não está na obtenção de uma obra, o foco está em quem que produz, ou seja, na pessoa. Esse fazer, também, não objetiva formar artistas e nem que se seja dominador de uma determinada técnica artística para que dela se beneficie. Assim, consideramos a obra de arte mais que um objeto, ela “é uma construção de uma experiência integral a partir da interação de condições e energias orgânicas e ambientais” (DEWEY, 1992, p. 153).
As oficinas terapêuticas, enquanto práticas grupais, possibilitam que ao produzir, de forma simbólica, o indivíduo produza a si mesmo e se perceba de forma mais integrada. Segundo Alice Brill (1988, p. 35), “a função simbólica dá ao homem a possibilidade de captar a sua vivência, expressando-a, a fim de memoriza-la para si mesmo ou transmiti-la aos outros, [...] permitindo a vida em comunidade e capacitando-o a construir e manter uma tradição”, assim ele evolui e se modifica. Essa abordagem terapêutica visa possibilitar que participante, a partir das vivências e da percepção de si e do outro, recupere o equilíbrio perdido, a autonomia, volte a sonhar, a se interessar pela vida.
O Ministério da Saúde, através da portaria 189, de novembro de 1991, regulamentou e instituiu as oficinas terapêuticas como atividades extra hospitalares de socialização e reinserção social.
As múltiplas possibilidades da linguagem da arte permitem que o real seja trabalhado por meio do simbólico, por isso essas atividades são profiláticas, evitando o adoecimento. As produções geradas por meio dos materiais plásticos, de forma simbólica, facilitam que "não ditos" sejam representados, e esses conteúdos podem ser observados de fora, passando a ser integrados pela consciência. Estudos atestam que “em toda matéria que o homem lida se fará sentir a sua ação simbólica” (OSTROWER, 2007, p. 51). Esse simbolismo é indicativo de como a linguagem, na sua multiplicidade, expressa a partir de diversas matérias, a marca do homem. Dando forma à matéria, ordenando-a, configurando-a, o ser humano também se ordena interiormente.
No campo do tratamento da dependência química, as oficinas terapêuticas promovem as relações horizontais e de aprendizagem, bem como incentivam a autonomia dos participantes, fazendo desses partícipes dos processos e fases do seu tratamento. Nesses Espaços de produção livre e espontânea, os participantes podem se reconhecer como pessoas produtivas, cidadãs.
As atividades lúdicas são dialógicas, elas permitem que, para além da interação entre os membros do grupo, o mediador e os materiais plásticos, de forma que desencadeie dentro do participante um diálogo interno, fomentando o melhor conhecimento de si mesmo. Neste contexto, o ato expressivo possibilita a expressão do não verbalizável. Através das oficinas terapêuticas, o indivíduo tem a possibilidade de criar, produzir e lançar um olhar sobre esta produção. Consequentemente, esta prática auxilia na reestruturação da sua subjetividade.
Segundo Dewey (1992, p. 154) “muitas pessoas são infelizes, internamente torturadas, por não dominarem nenhuma arte de ação expressiva”. A partir desse pensamento, podemos dizer que as oficinas terapêuticas, por propiciarem espaços de expressividade para as pessoas, promovem alegria e sentimento de satisfação.
Recursos expressivos como tintas, canetas, papéis, argila, filmes, sucatas, etc., que podem ser trabalhados a partir de variadas técnicas da arte, objetivam que o participante entre em um processo de autoconhecimento e crescimento pessoal. O autoconhecimento é um processo que demandada uma reflexão da pessoa sobre a vida, sobre o estar no mundo, e esse “olhar para dentro”, deve ser acompanhado por um profissional, um facilitador. Segundo o Sistema para detecção do uso abusivo e dependência de substâncias Psicoativas: encaminhamento, intervenção breve, reinserção social e acompanhamento (SUPERA) (2001-b, p. 13), “o desconforto psicológico pode ser reduzido pelo progressivo autoconhecimento, o paciente tem uma melhor oportunidade de diminuir ou parar o uso de drogas”, entretanto, o tratamento não terá a mesma eficácia “se uma boa relação com o terapeuta não for devidamente desenvolvida”, e nem bem manejada.
As oficinas terapêuticas envolvem o brincar e o aprender, elas também permitem a catarse, ou seja, o alívio de questões opressoras, gerando bem estar. É importante destacar que, quando alguém apresenta algum conteúdo através da arte, na verdade essa ação é uma reapresentação de algo subjetivo. Estudos mostram que a representação não é uma mentira, e nem uma ilusão, antes, ela é uma realidade outra que lança o produtor/expectador em um mundo intersticial, paralelo, onde tudo é possível, as reflexões e até mesmo as grandes mudanças de rumo na vida.
Dra. Renata Bomfim
[1]No campo das oficinas lúdicas terapêuticas, vale destacar o trabalho pioneiro da psiquiatra brasileira Dra. Nise da Silveira que, em 1946, no Hospital Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro, inseriu a pintura, a modelagem e a xilogravura na sessão de terapia ocupacional do hospital, em substituição a métodos de intervenção terapêutica corriqueiros na sua época, como o eletrochoque e lobotomia e os labores que nada tinham de terapêuticos. Dra Nise da Silveira chamou essa experiência de “Emoção de Lidar”. Esse trabalho de Dra. Nise, reconhecido internacionalmente, atesta o potencial terapêutico das práticas artísticas, capaz de revelar o mundo psíquico dos pacientes, e de produzir melhoras na sua saúde. Acerca desta experiência, Mário Pedrosa (1947), crítico de arte, escreveu: “Uma das funções mais poderosas da arte — descoberta da psicologia moderna—, é a revelação do inconsciente, e este é tão misterioso no normal como no chamado anormal”.