Espaço Terapêutico dedicado a promoção e cuidado da saúde mental, a partir de uma perspectiva ecológica, decolonial e criativa.

07/04/2015

A arte e as drogas (Dra. Renata Bomfim)

As Substâncias psicoativas (SPA) fazem parte da história da humanidade. Os caçadores e coletores da Idade Média começaram a identificar as plantas que geravam modificações na cognição, e desde então a ampliação do conhecimento sobre a natureza, especialmente sobre a flora, fez crescer o interesse pelas SPA. Essas descobertas das propriedades farmacológicas das plantas foram e continuam sendo muito importantes para a humanidade pelos seus efeitos úteis no combate à dor, na sedação, na geração de estímulos variados e no combate às doenças.
Assim como as SPA, a arte faz fazem parte da história da humanidade, inclusive, artistas de variadas épocas e localidades buscaram o efeito de êxtase produzido por essas substâncias para realizar seus trabalhos. Se às SPA atravessam o universo da arte desde os primórdios, assim também acontece com a religião, basta observarmos a origem divina do vinho e da cerveja. O Gênese bíblico diz que após o grande dilúvio, Noé se torna lavrador; “e plantou uma vinha. E bebeu do vinho e embebedou-se” (GÊNESE, 9:20). Na antiguidade grega e romana, encontramos Dionísio e Baco, deuses do vinho, da orgia e da festa. Na sociedade nórdica a cerveja era considerada o sangue dos deuses[1]. Há registros de bebidas sendo utilizadas em rituais indígenas, também, na América Latina.
A descoberta da fermentação foi um fator que possibilitou que as primeiras bebidas fossem produzidas, assim como os pães e outros alimentos. Frutas e cereais como o arroz, o milho, a cevada, o trigo, possibilitaram a criação das cervejas ao redor do mundo.
O cultivo caseiro e a produção em pequena escala, com o advento da modernidade, ganhou nova dimensão. Entre os séculos XV e XVI o tabaco, o café, o ópio, o açúcar e as especiarias se tornam um dos principais motivadores e objetivo das primeiras navegações. As SPA passaram ser consumidas de forma massiva e universalizadas, e não apenas em rituais religiosos ou com fins terapêuticos. As destilarias entraram em evidência no século XVII, o álcool, juntamente com o tabaco, e outras substâncias excitantes passam a fazer parte do dia a dia das pessoas. A arte, como fenômeno estritamente humano, reflete os hábitos da nascente sociedade burguesa, como observamos na obra de Edgar Degas “Absinthe Drinker”, de 1875, que retrata a atriz francesa Ellen Andrée em companhia homem que está ao seu lado é do pintor, também amigo de Degas, Marcellin Desboutin, no Café de la Nouvelle-Athènes, em Paris.
Não apenas a pintura, mas também outras formas de arte permitem conhecer um pouco dos hábitos das pessoas dessa época, é o caso do poeta, reconhecido como o artista fundador da modernidade, Charles Baudelaire (1821-1867). Baudelaire escrevia sob o efeito de drogas, especialmente do haxixe, “verniz mágico que colore a vida com solenidade, aclarando toda sua profundeza”, e o láudano, um derivado do ópio, que ele utilizava para aliviar as dores da sífilis. O poeta chamou o mundo das drogas de “paraísos Artificiais.”

Em 1858, Baudelaire escreveu Les Paradís artificiels, um ensaio no qual discorre sobre as drogas e a criação poética. Nesse texto o poeta discorre sobre a ambiguidade do consumo que, se por lado proporciona um momento de satisfação, “a embriaguez ilumina a inteligência”, por outro, gera a dependência: “Aquele que recorre a um veneno para pensar, em breve não pensará sem o veneno. Dá para imaginar o destino terrível de um homem cuja imaginação paralisada não funciona mais sem haxixe ou ópio?” (2015). Baudelaire falou sobre a ambiguidade das drogas no fragmento do poema “Hino à beleza”, que diz: “Vens tu do inferno profundo, ou sais do precipício?/ Beleza? Teu olhar, divino mas daninho,/Confusamente verte o bem e o malefício,E pode-se por isso comparar-te ao vinho[2].” Outro renomado escritor dependente de álcool e láudano foi Edgard Alan Poe que, sob o efeito de drogas, tentou o suicídio um ano antes de sua morte em 1848.
O material informativo produzido pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD, 2011, p. 3) salienta que no século XIX o interesse pela SPA se tornou científico. A partir de então variadas experiências passaram a ser realizadas com as SPA. No início do século acreditava-se que “o comportamento dependente resultava de instintos subconscientes”. Sigmund Freud, considerado o pai da psicanálise, foi um dos cientistas que fez experimentos com a cocaína. Nenhuma entre as diversas teorias surgidas no início do século conseguiu explicar adequadamente as questões psicológicas e neurobiológicas envolvidas na dependência química. Chegamos ao século XX com as SPA imbricadas nos processos sociais, culturais, econômicos, religiosos, políticos e científicos. Na década de 1940 a pesquisa conjunta entre a psiquiatria e a psicologia criou, a partir de experimentos com chipanzés, a “teoria do reforço”. Essa experiência indicou que esses animais, após receberem drogas por um período, pediam-nas aos pesquisadores. A partir daí se chegou à conclusão de que as drogas geram modificações cerebrais, e que cada uma das drogas age de maneira particular no cérebro. Assim, “cada droga tem seu mecanismo de ação particular, mas todas as drogas de abuso agem, direta ou indiretamente, em um mesmo local do cérebro: uma via de circuitos neuronais, que é responsável pelo sistema de recompensa cerebral”. Essa área do cérebro é mesma estimulada quando se sente prazer, alegria, satisfação como, por exemplo, quando olhamos para uma paisagem bonita, escutamos uma música da qual gostamos e comemos (2011, p. 3). Os circuitos cerebrais nos quais as drogas de abuso agem e provocam modificações se chamam “Sistema de recompensa cerebral”.
As SPA atuam sobre os mesmos circuitos cerebrais que a arte, e que esses circuitos são, também, os responsáveis pela memória e pelas emoções. Entre os efeitos das SPA está a modificação da cognição, ou seja, da forma como se percebe o mundo a partir dos sentidos. Há uma amplificação na percepção das emoções. Dessa maneira, as drogas estimulantes, as anfetaminas, a cocaína, e mesmo doses baixas de álcool, desencadeiam um processo chamado “sensibilização”, que faz com que o usuário se torne intolerante. Nos estados de abstinência das drogas, há no usuário a redução dessa percepção e, consequentemente, do prazer, levando-o à fissura e ao desejo do reuso da droga.
O abuso de drogas e de álcool ocasiona uma série de doenças que afetam quase todos os sistemas do organismo, entretanto, como observamos, a droga faz parte da história da humanidade, e qualquer ação interventiva nesse campo, deve levar em conta a sua historicidade, os interesses que atravessam os grupos que defendem tanto a sua proibição, quanto a sua liberação, primando, especialmente, pela saúde do dependente químico, esse deve ser o foco principal das ações interventivas psicossociais, bem como, nunca perder de vista que o dependente químico é um sujeito que deve ter os seus direitos assegurados.
Frente ao problema contemporâneo do uso de drogas, propomos a utilização dos recursos expressivos da arte por seu poder de educar com prazer, por gerar uma satisfação capaz de ajudar o dependente químico a readquirir a capacidade de criar (a si mesmo) pela ampliação de suas capacidades internas para enfrentar as situações que a vida nos coloca. O pensador John Dewey (1992, p. 46), destaca o valor emancipatório da arte, defendendo que essa “é um processo que torna o mundo um lugar diferente para se vive”, ela “apresentar o mundo em uma experiência nova”, e não o faz nos afastando da realidade, mas, nos ajudando a “aceitar a vida”.  A dependência química, como observamos, afeta a forma como a pessoas apreende mundo, afeta a sua cognição. É dessa maneira que a arte, que também desempenha uma função moral, é capaz de (re)educar os sentidos, “eliminar o preconceito, retirar os antolhos que impedem os olhos de ver, rasgar os véus decorrentes do hábito e do costuma, aprimorar a capacidade de perceber” (DEWEY, 1992, p. 45).  Nos deparamos, por meio do ato expressivo, com o “prazer estético[3]”, “experiência integradora e emocional” que permite que “modos de equilíbrio sejam atingidos”, dessa forma “senti-nos realizados, apesar de surpresos” (DEWEY, 1992, p. 24). A arte é capaz de nos levar para além de nós mesmos para que encontremos a nós mesmos, destacou Dewey.




[1]Drogas: da coerção à coesão. Curso de capacitação em álcool e outras. Departamento de saúde Pública do centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Disponível em:< https://unasus.ufsc.br/alcooleoutrasdrogas/files/2015/03/Modulo-1.pdf>. Acesso em 15 de mar. 2015.
[3] Eu costumo chamar a esse prazer que a arte proporciona de “barato da arte”.
BRIL, Alice. Da arte e da linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1988.

 DEWEY, John. Arte como experiência. São Paulo: Martins Fontes, 2010.